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Cidade sem catracas

Gilberto Dimenstein 

15 de setembro de 2008

Cidade sem catracas
Um grupo de adolescentes entrou, na terça passada, pela primeira vez num cinema. 

Pelos comentários, eles pareciam se sentir num cenário de ficção: o carpete, as poltronas confortáveis, a imensa tela que se destacava na sala escura e a potência do som. A ficção não estava, para eles, na tela, mas fora dela. O filme era apenas uma extensão de sua realidade.

Aquele grupo integrava caravanas de jovens que vieram das áreas mais pobres da já empobrecida periferia para assistir ao filme "Linha de Passe". Para muitos deles, a fantasia já tinha começado quando entraram num ônibus com ar-condicionado em direção à rua Augusta, onde está o Espaço Unibanco. 

É um excelente filme, mas a melhor tomada, disparado, foi o deslumbramento de alguns dos espectadores, quando, depois de acesas as luzes, apareceram os atores para o debate. Ouviram um dos atores, Kaique Santos, dizer que nenhum dos seus amigos da escola o veria no cinema. 

A emoção e a agudeza dos comentários brotavam da cumplicidade com a falta de perspectiva dos adolescentes do filme, divididos entre as esperanças do futebol e da religião. 

Nessa imagem cinematográfica está o valor de uma das poucas e boas inovações que aparecem no debate eleitoral de São Paulo.

Todos os principais candidatos a prefeito colocaram em seu programa a educação em tempo integral. 

Mas a novidade é a proposta, também consensual, de fazer dessa ampliação da jornada escolar um encontro entre educação e cultura, levando os estudantes a ocupar a cidade - se esse tipo de projeto vai sair do papel é o que vamos ver. Nessa derrubada de catracas, há uma enorme chance de atiçar a curiosidade das crianças e dos adolescentes, ao tirá-los de salas de aula e colocá-los no teatro, no cinema, num parque ou numa exposição. 

Ilusão? 

A cidade de São Paulo tem todas as condições de oferecer uma extensa e intensa programação complementar às escolas e, assim, aumentar o repertório cultural de seus estudantes. Um dos exemplos, aliás, é o anúncio, feito na semana passada, de que a USP vai abrir seus laboratórios para alunos de escolas públicas.

Há muito mais atrações gratuitas ou a preços populares do que se imagina. O que ocorre é que estão fragmentadas e desconectadas. 

Estou vendo isso com nitidez por causa de uma experiência de jornalismo comunitário em que estou participando, conduzida por recém-formados da USP, Mackenzie, Metodista e PUC.

Pelas redes da internet, eles se propuseram a montar um mapa digital (www.catracalivre.com.br) das atividades gratuitas ou a preços populares da cidade de São Paulo. 

Os eventos culturais deveriam servir como pretexto para que o leitor tomasse contato com as mais diferentes possibilidades educativas, compartilhadas por estudantes e professores numa autoria coletiva. 

Um exemplo: está acontecendo na Estação Ciência, da USP, uma exposição gratuita sobre o coração. 

Pelo mapa, é possível, usando como estímulo aquela exposição, fazer uma viagem pelo corpo humano, num projeto criado pelo departamento de telemedicina da USP. 

Há um show de rock programado para hoje na galeria Olido - o projeto permite que o evento presencial sirva como aula a distância sobre a história do rock. Resultado: uma enxurrada crescente de dicas. 

Amplia-se a rede dos CEUs e das Fábricas de Cultura, sem contar programas de música (Guri), dança e teatro (Teatro Vocacional). Somem-se a isso as programações das bibliotecas públicas e dentro das universidades. 

Só nas próximas semanas vão surgir mais três museus, impossíveis sem o apoio privado - são os museus do futebol, da criança (Fundação Catavento) e do meio ambiente (Praça Victor Civita). 

Não faltam atrações em espaços da Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Centro da Cultura Judaica, Cosipa, Itaú e Unibanco, assim como nas livrarias da Vila, Fnac e Cultura. Redes de cinema oferecem ingressos por até R$ 1. 

Abrem-se mais oportunidades com a decisão (isso se for cumprida) de que um terço das atividades culturais do Sistema S seja gratuito às escolas públicas. 

Até mesmo em lugares improváveis, como num boteco, faz-se um ponto de troca de conhecimento. 

Foi do Bar do Zé Batidão, na zona sul, que se espalhou a moda de saraus poéticos na periferia. 

Tudo isso será um desperdício se o poder público não souber fazer a ponte entre a cidade e a escola, fazendo de uma visita a uma exposição algo mais do que um evento episódico - esse desperdício é a regra. Um caso a ser acompanhado são os manuais entregues aos professores da rede estadual sobre como tirar proveito de uma visita a um museu. Ainda não dá para avaliar seu funcionamento. 

Não separar educação e cultura, quebrando os muros das escolas, é possivelmente o melhor caminho para uma cidade sem catracas. O que se consegue é aquela emoção dos jovens que foram pela primeira vez ao cinema - se conheceram melhor vendo-se refletidos na tela. 

PS: Quem ganhasse incentivos fiscais destinados à cultura deveria sempre dar como contrapartida ingressos às escolas públicas e, mais do que isso, com direito à formação de professores. Se quiser conhecer os mapas da cultura, mande um e-mail para catracalivre@catracalivre.com.br.

Ângela (Campinas – SP)


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